Numa noite de superlotação, o escritor Ailton Krenak se tornou a primeira pessoa indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. A cerimônia de posse aconteceu na noite desta sexta-feira no Petit Trianon, sede da instituição centenária, no Rio de Janeiro.
Ao chegar à sede da ABL, Krenak afirmou que o simbolismo de sua eleição é “o aqui e agora”. Segundo ele, é uma “virada de página” na história da academia e sua relação com os povos originários.
“Eu venho para cá, um espaço da lusofonia, trazendo as línguas indígenas. Torço para que haja uma mudança na ABL e outras diversidades étnicas que temos no Brasil também possam ganhar espaço”, afirmou.
Ele também saudou a escritora Conceição Evaristo, que foi candidata a uma vaga na ABL sem conseguir se eleger, e disse que compartilha com ela a busca por uma “literatura ancestral”.
Diferente do que costuma ocorrer nesse tipo de cerimônia, Krenak fez um discurso marcado pelo improviso e por digressões, evitando ler o papel de que dispunha no púlpito. Uma marca, inclusive, da sua produção literária.
Em sua fala, ele ressaltou justamente a importância dessa tradição. “Nós somos herdeiros de tempos imemoriais. E tudo o que sabemos sobre isso nos chega através do discurso oral.”
Durante a cerimônia, o escritor foi recebido pela acadêmica Heloísa Teixeira, que reforçou a qualidade histórica da ocasião. A espada foi entregue a ele pelo escritor Arnaldo Niskier, e o colar, pela atriz Fernanda Montenegro.
No dia em que foi eleito, Krenak afirmou que busca criar na ABL uma plataforma semelhante à sua Biblioteca Ailton Krenak, que dispõe de centenas de imagens, textos, filmes e documentos.
“Poderíamos fazer isso com todas as línguas nativas. Teria tudo a ver com a Academia Brasileira de Letras incluir mais umas 170 línguas além do português. A ideia é priorizar a oralidade, e não o texto. O que ameaça essas línguas é a ausência de falantes”, afirmou na ocasião.
O imortal Zuenir Ventura disse nesta sexta que votou pela eleição de Krenak. “A entrada dele na Academia representa uma reparação histórica.”
Segundo o compositor Gilberto Gil, empossado recentemente, a chegada de Krenak é muito importante “para o processo de aceleração do desenvolvimento brasileiro”.
Questionado se a eleição de uma pessoa indígena para a ABL veio tarde, afirmou “isso de dizer o tempo em que as coisas devem acontecer é muito complicada”. “Tenho a impressão de que essa vinda do Krenak foi forjada há pouco tempo, enquanto que antigamente era uma coisa muito mais demorada.”
Krenak nasceu em 1953 na região do vale do rio Doce, em Minas Gerais. Já há alguns anos se tornou um dos maiores ativistas do movimento socioambiental e defensor dos povos indígenas.
Num dos momentos mais notórios de sua trajetória, participou da Assembleia Constituinte de 1987 como representante da União das Nações Indígenas, que ajudou a fundar. Sua presença foi decisiva para a incorporação de demandas dos povos originários na Carta promulgada em 1988.
Nos últimos anos, Krenak se consolidou como intelectual com a publicação de diversos livros, traduzidos para 13 países. A parte mais conhecida de sua obra é a trilogia formada por “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, “A Vida Não É Útil” e “Futuro Ancestral”, formada por adaptações de palestras e textos curtos, que apresentam seu pensamento de forma acessível.
Notadamente, a ABL tem buscado incorporar maior diversidade entre seus acadêmicos, como ilustram as eleições recentes de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil, duas figuras populares e ligadas a outras formas de expressão intelectual que não a literatura tradicional.
Para muitos, é um novo momento para a instituição, visão da qual discorda o imortal e jornalista Ruy Castro, colunista deste jornal. “A Academia sempre teve estrelas. Olavo Bilac era uma estrela, as pessoas beijavam as mãos dele na rua, João do Rio também.” Para ele, “a ABL fez muito bem em receber Krenak, porque ele vai dar uma grande contribuição à própria Academia”.
Krenak foi eleito em outubro do ano passado com 23 votos, superando a historiadora Mary Del Priore e o também escritor indígena Daniel Munduruku. Ele passa a ocupar agora a cadeira cinco, vaga desde agosto com a morte de José Murilo de Carvalho.