Um ato para relembrar a implantação do golpe militar reuniu neste domingo (31) petistas históricos e entidades, teve menções ao veto do governo sobre o tema e recados para Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL).
A caminhada em São Paulo marcou os 60 anos do golpe de 1964, com o lema “Para que não se esqueça, para que não continue acontecendo”.
No começo do mês, o governo Lula orientou ministérios a não realizar atos em memória da efeméride em meio a um esforço para distensionar as relações com as Forças Armadas e diante da polarização persistente no país.
Entre petistas históricos no ato em São Paulo, que reuniu centenas de manifestantes, estiveram o ex-ministro José Dirceu, preso durante a ditadura, que falou em “compromisso irrenunciável” pelo resgate da memória das vítimas daquele período.
“Enquanto as Forças Armadas brasileiras não submeterem ao poder civil, significa que o currículo das escolas militares precisa mudar”, disse Dirceu.
Ao fim do discurso, a reportagem fez questionamento sobre o veto do governo ao assunto. Porém, ele não quis se pronunciar.
No ato, diversas entidades fizeram pronunciamentos sobre o marco histórico. A Rede Latino-Americana e do Caribe de Sitios de Memória leu nota com repúdio à decisão do governo Lula em que afirmou que reivindicar a ditadura e se calar sobre ela são “duas faces da mesma moeda”.
O ex-deputado e ativista de Direitos Humanos Adriano Diogo, militante contra a ditadura, afirmou que não se pode proibir a memória em relação ao período.
“Eu sou cristão. A Páscoa ninguém pode proibir. A rememoração da morte de Cristo ninguém pode impedir. Isso é o pilar fundamental da civilização cristã. A mesma coisa é com nossos mortos e desaparecidos”, disse à reportagem, após ser perguntado sobre o tema.
O deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP) também esteve presente. À Folha afirmou que os atos da ditadura não podem ser esquecidos, mas também não fez menção direta à postura de governo.
A deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) afirmou ser difícil julgar a posição do presidente, citando limites impostos pela correlação de forças. “Não é o ideal. O ideal é que seja um governo eleito democraticamente, tivesse autonomia e liberdade para se posicionar.”
O evento em São Paulo partiu de local simbólico do período da ditadura militar, o antigo Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-Codi, um dos principais centros de tortura do regime.
O evento foi organizado pelo Movimento Vozes do Silêncio, representado pelo Instituto Vladimir Herzog, o Núcleo de Preservação da Memória Política e a OAB-SP, com apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. O ato passou a fazer parte do calendário oficial de São Paulo desde o ano passado, devido a projeto do então vereador Antonio Donato (PT), hoje deputado estadual.
O evento também foi marcado por diversas menções à tentativa de golpe em 8 de janeiro e pedidos pela responsabilização de Jair Bolsonaro e seus aliados.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL), por exemplo, pediu prisão a Bolsonaro.
Soninha Francine, secretária de Direitos Humanos da gestão Ricardo Nunes (MDB), apoiado por Bolsonaro, fez menção ao 8 de janeiro de 2023, quando um grupo de apoiadores do ex-presidente invadiu e depredou as sedes dos três Poderes, em Brasília.
“Se em 8 de janeiro deste ano a gente tivesse marcando o aniversário de um novo golpe, ninguém poderia estar aqui hoje participando deste ato”, disse.
Ela também defendeu o direito à memória. “Chega a ser amargamente irônico que, ao mesmo tempo em que não se permitiu fazer o sepultamento digno de tantas pessoas, se queira deixar enterrado o passado.”
Entre o público, surgiram gritos de “fora Nunes” após o discurso de Soninha.
Além deste evento, outra coalização formada por 200 organizações da sociedade civil organiza ações com o mesmo slogan que seria adotado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania caso Lula não tivesse desautorizado eventos em alusão à data.
Consternação e frustração são alguns dos sentimentos gerados pelo veto de Lula, segundo Arthur Mello, coordenador de advocacy do Pacto pela Democracia.
Segundo a organização, a escolha do slogan “Sem memória não há futuro” é “propositadamente similar ao que seria adotado pelo Ministério dos Direitos Humanos, mas as ações foram canceladas pelo governo Lula”. Os eventos envolvem o levantamento de uma hashtag com o slogan nas redes sociais e ações de lambe lambe na rua Consolação, em São Paulo, dentre outros eventos.
“Há um sentimento não só de frustração, mas de consternação da sociedade civil com o governo federal decidindo se calar nos 60 anos do golpe“, afirma Mello. “Dizer que não há motivos para se falar do golpe militar é admitir um completo desconhecimento das causas dos ataques do 8 de janeiro.”
Segundo ele, Lula errou não só no veto dos atos, mas também ao não reinstalar a Comissão de Mortos e Desaparecidos encerrada no governo Bolsonaro, além de outros deslizes sobre “verdade, memória e justiça”.
Apesar disso, a data foi mencionada por ministros do governo e lideranças petistas nas redes sociais neste domingo (31), embora sem alarde.
Para Mello, é importante fazer um trabalho educativo junto à população sobre a importância de não esquecer e nem repetir o passado, o que a sociedade civil não vai deixar de fazer, mesmo com a falta de apoio do governo.
“Os 60 anos de golpe são o ovo da serpente”, diz. “[O discurso de Lula mostra] um apequenamento político do governo federal. A gente não vive sob tutela do governo militar mais. A gente não precisa pedir autorização aos militares [para celebrar a democracia]”, afirma.
Assinam a campanha organizações como a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, Movimento Mulheres Negras Decidem e Washington Brazil Office.