Um estudo realizado por pesquisadores da startup brasileira Huna e pelo Grupo Fleury revelou que a inteligência artificial (IA) pode ser uma aliada na detecção precoce do câncer de mama por meio da análise de um exame de sangue simples, como o hemograma. Publicada na revista Scientific Reports, da Nature, a pesquisa destaca a capacidade da tecnologia em identificar padrões ocultos associados ao aumento do risco da doença, potencialmente evitando diagnósticos tardios, um dos principais motivos de desfechos negativos associados a esse tipo de tumor.
Como metodologia, os pesquisadores utilizaram uma solução de machine learning, um dos guarda-chuvas da IA, para analisar dados de hemogramas realizados nos últimos 20 anos, por quase 400 mil mulheres, entre 40 e 70 anos, de oito Estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraná e Distrito Federal. O estudo incluiu exames de mulheres em diferentes estágios da doença, desde aquelas com indícios incipientes e, portanto, não detectáveis pela mamografia, até aquelas que já haviam passado por biópsia, confirmando a presença do tumor.
“Tradicionalmente, exames de sangue de rotina são analisados usando parâmetros fixos e lineares. No entanto, doenças complexas como o câncer envolvem processos biológicos não lineares. O uso de IA nos permite detectar padrões complexos nas células sanguíneas associados ao câncer de mama”, explica Daniella Castro Araújo, PhD em IA, CTO e cofundadora da Huna, responsável pelo desenvolvimento da tecnologia inovadora.
Para facilitar o entendimento, Daniella ilustra um exemplo cotidiano: muitos de nós estamos familiarizados em olhar nossos exames de sangue e esperar que os valores estejam dentro de determinados limites. Porém, a complexidade dos processos biológicos, especialmente em doenças como o câncer, requer uma abordagem que vai além. Isso significa que, ao analisar o hemograma, não se trata apenas de olhar para cada elemento individualmente, como a hemoglobina ou os leucócitos, mas, sim, de compreender as relações entre eles por meio de operações matemáticas entre cada um dos números que compõem os exames de sangue. Daí é que entra a inteligência artificial.
“A IA atua como uma lente que não apenas observa variações isoladas, mas também as relações entre diferentes componentes do exame de sangue. Ela é capaz de identificar padrões distintos presentes no grupo afetado pela doença, os quais se distinguem do grupo saudável, mas que podem passar despercebidos inicialmente. A IA pode, por exemplo, detectar o aumento da razão entre neutrófilos e linfócitos, um indicador precoce da doença e que pode não ser evidente à primeira vista”, ensina Daniella.
Segundo o coordenador médico do Grupo Fleury, Bruno Rocha, a intenção não é substituir exames convencionais, mas sim criar um indicador de risco para o câncer de mama que seja capaz de realizar uma “triagem” entre pacientes a partir de um exame rápido e acessível. Até porque a metodologia com IA não permite prever o risco de desenvolvimento da doença, e sim flagrar a doença em seus estágios iniciais, inclusive em momentos onde a detecção pela mamografia não é possível.
“Outros indicadores tendem a observar o risco em cinco, dez anos, o que é interessante para algumas medidas populacionais, mas, quando a gente pensa em otimizar os processos de atendimento, em diminuir as filas de espera e criar prioridades de atendimento, olhar para o câncer já instalado, em seus estágios mais iniciais, pode também proporcionar benefícios”, afirma Bruno.
“O fato do nosso campo de análise ser menor, ao não abranger características específicas dessas mulheres [como histórico familiar, densidade mamária, entre outros], pode ser considerado uma das limitações do estudo. No entanto, ao focarmos nos dados laboratoriais, obtidos através do hemograma, adotamos uma abordagem que não implica em custos adicionais, já que estamos otimizando exames de rotina, o que também se apresenta como uma vantagem. É uma via de mão-dupla”, ressaltou a cofundadora da Huna.
Fase de testes
De acordo com os pesquisadores, a ferramenta com IA para a detecção precoce do câncer de mama já está em fase de testes em quatro operadoras de saúde e no Hospital do Amor, de Barretos, no interior paulista, que integra a rede pública de saúde. Eles destacam que a solução promete ser especialmente relevante para a rede pública. Isso se deve, em parte, devido à possibilidade de uma gestão mais eficiente de recursos e à priorização de determinadas populações.
Outro ponto, de acordo com Rocha, é que o diagnóstico precoce do câncer de mama resulta em custos de tratamento muito menores em comparação com diagnósticos realizados em estágios mais avançados da doença, o que contribui para a sustentabilidade financeira do sistema público de saúde como um todo, juntamente com a opção do reaproveitamento dos exames de rotina.
“O SUS vai continuar fazendo programas de convocação à mamografia, mas e aquelas mulheres que alguém precisa bater na porta, mandar um WhatsApp e ligar, para garantir que ela vai fazer a mamografia e seja diagnosticada mais precocemente? É justamente essa a questão que a gente procura responder”, diz o coordenador médico do Grupo Fleury.
Próximos passos
Após o período de testes e a inscrição na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a ideia é iniciar a comercialização da ferramenta. Os pesquisadores também estão iniciando um estudo transversal em colaboração com o Hospital do Amor. Segundo Daniella, o objetivo é realizar uma pesquisa com 1.500 mulheres, permitindo explorar outros testes laboratoriais realizados em amostras de sangue, diferentes do hemograma, para aprimorar as descobertas do estudo atual.
Além disso, os pesquisadores estão expandindo seu foco para investigar se os padrões identificados no câncer de mama podem ser usados para outros tipos de câncer que também exigem atenção especial, como o câncer colorretal e de pulmão. “A gente já está desenhando estudos com uma plataforma com mais tipos de câncer. Isso já está em andamento. Então, o importante é que a gente abriu uma linha de pesquisa mesmo”, avalia Daniella.
Para isso, eles ressaltam a importância de equilibrar a amplitude dos dados coletados com a viabilidade prática da implementação das descobertas. Aspectos como disponibilidade e custo são considerados como forma de assegurar que as conclusões da pesquisa sejam não apenas relevantes, mas também aplicáveis e acessíveis, sobretudo no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Essa ferramenta pode ficar muito potente se a gente aumentar a quantidade de dados disponíveis, mas temos que estar atentos com o que está disponível no mundo real e que seja acessível para o sistema público de saúde. O custo-benefício tem que ser viável”, ressalta Rocha.