11/03/24
Setores da indústria de bebidas alcóolicas no Brasil estão em pé de guerra sobre o formato do chamado “imposto do pecado” – a taxação especial criada pela reforma tributária sobre produtos que causam mal à saúde e ao meio ambiente.
O principal ponto de discórdia diz respeito à adoção de um imposto único para todos os tipos de bebida ou de um sistema progressivo, em que as de maior teor alcoólico seriam mais oneradas. Isso implicaria tributos mais altos para bebidas como cachaça, whisky, vodca e gin, e mais baixos para vinho e cerveja.
“Já está mais do que comprovado que políticas tributárias funcionam para redução de consumo”, afirma Paula Johns, diretora-geral da organização ACT Promoção da Saúde. “Restrição de marketing, alerta para o consumidor e ambientes que não promovam o consumo são muito importantes também, mas preço é o elemento mais determinante”, garante Johns.
Ana Maria Maya, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acrescenta que a cobrança de impostos seletivos é inclusive recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde). “Essas ações são consideradas uma estratégia vantajosa para a população e para os governos, já que salvam vidas e previnem doenças, ao mesmo tempo que mobilizam recursos financeiros para o país”, explica.
A Repórter Brasil acompanhou as últimas reuniões realizadas na Câmara dos Deputados com representantes da indústria para debater e tentar influenciar a nova regulamentação para o setor, que está sendo construída pelo governo federal por meio de um projeto de lei complementar.
A expectativa é de que a proposta, que também deve se estender aos chamados “alimentos ultraprocessados”, seja apresentada ao Congresso até meados de maio, para que o imposto seletivo seja votado e comece a ser cobrado em 2027.
Imposto único ou progressivo?
Na indústria, o debate divide os fabricantes. A postura mais controversa é puxada pelo grupo dos destilados, que reúne os fabricantes de whisky e cachaça, por exemplo. Em reunião realizada na primeira semana de março, o presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), Eduardo Cidade, tentou trazer todos para “o mesmo lado”, sob o argumento de que é preciso evitar “assimetrias”.
Na prática, os destilados defendem que seja estipulada uma alíquota única de imposto seletivo para todo tipo de bebida alcoólica, independentemente da quantidade de álcool. “O importante é que a gente procure tratar de ética tributária no Brasil, e isso passa por isonomia tributária dentro dos setores”, disse Cidade, enquanto os representantes de outros setores ouviam em silêncio.
O argumento dos destilados se baseia na tese de que o objetivo do imposto seletivo não é ampliar a arrecadação do governo, mas sim diminuir o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.
“Sendo assim, o segmento industrial brasileiro não pode entrar nessa guerra de querer tributar mais um e menos outro. Taxar de forma diferente produtos cujo consumo abusivo pode gerar os mesmos danos à saúde seria contribuir para a manutenção de um ambiente concorrencial injusto, sem a garantia de que o produto menos taxado seria consumido moderadamente”, disse.
A reação dos cervejeiros foi imediata. Márcio Maciel, presidente executivo do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), evocou a “ética” e a “saúde da população” para defender o seu argumento: “As boas práticas internacionais para tributação de bebida alcoólica adotam um modelo gradual de tributação, conforme o teor alcoólico”.
A Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), por exemplo, defende que impostos específicos sobre o teor alcoólico “são ainda mais eficazes porque levam a um consumo menor, reduzem a iniciação entre os jovens e incentivam a indústria a oferecer bebidas com menor teor alcoólico”.
No entanto, para Carlos Lima, diretor-executivo do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), a alíquota deve ser uma só para todos. Ele afirmou que há quase mil produtores de cachaça registrados no Ministério da Agricultura. Desse total, 99% são micro e pequenas empresas.
“Nós sempre nos posicionamos contrários ao imposto seletivo, porque a gente entende que o combate ao consumo nocivo do álcool não é feito com o aumento de impostos, mas através de correta informação ao consumidor e com educação”, comentou. “Ter um imposto que possa ter um caráter progressivo ou regressivo (conforme o teor alcoólico) fará com que iguais sejam tratados como desiguais”, acrescentou.
Lima afirma que, quando se avalia a bebida mais consumida no Brasil, a cerveja lidera o ranking, com quase 84 litros per capita. Já o consumo de destilados fica em 4,1 litros por pessoa, anualmente. “A gente precisa olhar o padrão de consumo dessas bebidas alcoólicas e, não simplesmente, num processo rápido, tentar demonizar bebidas com alto teor alcoólico e favorecer aquelas com baixo teor. Esse é um ponto crucial para a discussão”, justificou.
Os produtores de vinho, por sua vez, pensam de outra forma. Hélio Luiz Marchioro, diretor-executivo da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho), defende que a categoria se difere das demais e que há países onde se incentiva o seu consumo no lugar de destilados.
“Não seria correto, nem justo colocar todos no mesmo lugar. Não há país no mundo que trate o vinho da mesma forma que um destilado. São coisas completamente diferentes e assim são tratadas, seja em relação a imposto, processo produtivo ou saúde”, comentou.
Na tentativa de escapar do imposto seletivo, a indústria do vinho faz lobby, inclusive, para tentar enquadrar o vinho com um “alimento funcional”, ou seja, retirá-lo da categoria de bebida alcoólica, o que o isentaria do imposto seletivo. Há até um projeto de lei nesse sentido.
No entanto, a OMS critica o “tratamento especial” destinado à bebida e a isenção de impostos ao vinho em 22 países europeus. A organização divulgou em dezembro um “manual tributário do álcool”, no qual defende impostos mais elevados para todos os tipos de álcool.
Segundo Paula Johns, a ACT Promoção da Saúde apoia a proposta de estabelecer uma alíquota única para bebidas alcoólicas. “Essa medida garantiria que o imposto seja igual para, aproximadamente, uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou um shot de cachaça, tributando o álcool em si e não o valor etílico de cada bebida, evitando assim vantagens injustas para certos tipos de bebidas, como a cerveja”, resume.
Ana Maria Maya, do Idec, explica que a organização ainda avalia internamente qual seria a melhor forma de tributação. “O fato é que estamos vivendo um momento único na história do país”, comemora.
Debate também afeta alimentos ‘ultraprocessados’
O imposto do pecado também recai sobre os chamados “alimentos ultraprocessados”, aqueles que envolvem várias etapas e componentes químicos em sua produção, geralmente mais nocivos à saúde.
Assim como ocorre com a indústria das bebidas alcoólicas, representantes do agronegócio, de varejistas e de restaurantes ainda não se entenderam sobre como o imposto seletivo recairá sobre os ultraprocessados.
Na semana passada, uma reportagem do The Intercept Brasil revelou a primeira versão de um pré-projeto sobre o assunto, compartilhada entre diversos setores da indústria e parlamentares ligados à Frente Parlamentar do Empreendedorismo. O texto traz uma série de demandas da indústria de alimentos e de bebidas, como a proposta de que seja enviado um projeto de lei complementar específico para cada tipo de produto, e não um setor como um todo.