Se você enfrentar um evento cardiovascular ou ficar constatado que seu risco de infarto ou AVC é elevado, o médico provavelmente traçará metas de LDL (popularmente chamado de colesterol ruim) e também de pressão arterial para protegê-lo. “Mas, quem sabe, além delas, vamos ter que começar a falar de metas de proteína C reativa [molécula marcadora de inflamação]”, comentou o cardiologista Remo Furtado, diretor de pesquisa clínica do BCRI/Med.IQ e professor colaborador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), durante o evento “A Year In Review – Cardiologia” da Med.IQ, no final do ano passado.
Quando ouvi sobre a proteína C reativa, fiquei curioso e confuso. Afinal, quando se fala em doenças cardiovasculares, geralmente são citados os chamados fatores de risco tradicionais, como hipertensão, colesterol LDL elevado, obesidade, diabetes e tabagismo.
Mas a verdade é que eles não contam toda a história. Tanto que, apesar de vários avanços da medicina cardiovascular dos últimos anos, essas doenças seguem entre as principais causas de morte e incapacidade no mundo todo.
“As terapias que temos hoje são muito boas, mas você não consegue zerar a doença cardiovascular”, fala o cardiologista Raul Santos, diretor da Unidade Clínica de Lípides do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP, que não fez parte do evento da Med.IQ. Segundo ele, por exemplo, com o controle do colesterol e da pressão e o uso de drogas antiplaquetárias [que buscam impedir a formação de coágulos sanguíneos nas artérias], é possível reduzir metade dos eventos cardiovasculares recorrentes, mas entre 45% e 50% das pessoas vão passar por isso novamente.
É o que os médicos chamam de risco residual (ou seja, que continua existindo mesmo ao controlar os fatores de risco tradicionais). Parte dele pode ser explicado justamente pela inflamação.
Isso é especialmente verdade para a aterosclerose, na qual, ao longo do tempo, depósitos de várias substâncias – em especial gordura, mas também de células inflamatórias – formam placas nas artérias. O resultado é uma redução no fluxo sanguíneo, que pode levar a uma obstrução – causando problemas como infarto (interrupção do fluxo sanguíneo para o coração) e acidente vascular cerebral (falta ou redução do suprimento de sangue no cérebro).
Vale dizer que, em certa medida, a inflamação também é uma boa amiga, já que sinaliza para o organismo que ele precisa combater uma infecção ou lesão. Quando falamos de doença cardiovascular, porém, o grande problema é o processo inflamatório de níveis mais baixos e que se sustenta por longos períodos (que é chamada de inflamação crônica). Estudos vêm mostrando que ela tem um papel crucial no desenvolvimento e na progressão das doenças cardiovasculares, e pode ser um preditor de risco importante mesmo em pessoas aparentemente saudáveis.
Por que, então, não estamos acostumados a ouvir sobre ela? Há várias possíveis explicações. Para começar, ao contrário dos fatores clássicos, a sua influência no sistema cardiovascular foi descrita há menos tempo — só nos anos 1990 a aterosclerose foi descrita como uma doença também inflamatória. Outro ponto é que, embora estudos venham mostrando que reduzir a inflamação ajuda a controlar o risco cardíaco, transformar esses achados em tratamentos reais e eficazes ainda é um grande desafio.
Contudo, os recentes avanços de novas drogas anti-inflamatórias estão na “fronteira do conhecimento” e indicam que isso pode estar prestes a mudar.
A proteína C reativa
O interesse nos níveis de proteína C reativa (PCR) tem flutuado ao longo dos anos desde que sua relação com as doenças cardiovasculares foi relatada, de acordo com especialistas. Essa molécula, por si só, não parece causar o problema. Produzida principalmente pelo fígado, ela aumenta durante qualquer situação em que haja inflamação. Ou seja, é um sinal de que algo diferente está acontecendo (um biomarcador de inflamação).
Tudo começou em 1997, quando Paul Ridker, junto à uma equipe, publicou um estudo que mostrou que homens aparentemente saudáveis com níveis mais elevados de PCR no sangue corriam um risco maior de infarto e AVC. E não se tratava de uma elevação tão alta como ocorre no caso de uma infecção. “É como se fosse uma microinflamação”, descreve Furtado.
Dois anos depois, Russel Ross descreveu a aterosclerose como uma doença inflamatória, desafiando a compreensão da época sobre as placas que se depositam nas artérias. “No passado, achava-se que essas placas ateroscleróticas eram só gordura, mas, na verdade, não são só isso. Elas contêm células inflamatórias”, explica Furtado.
Foi o “primeiro boom” do interesse dos cardiologistas na PCR, de acordo com Santos. Ocorre que, segundo ele, a influência dessa proteína na reclassificação de risco cardiovascular de um paciente era modesta. “Tinha um poder de reclassificação de cerca de 15%. Se eu fizer uma tomografia cardíaca e encontrar calcificação na coronária, ela é de quase 50%, 55%.”
Ridker trouxe um novo fôlego para a PCR com a publicação de resultados do estudo JUPITER. Nele, médicos de vários países testaram o uso de estatinas (medicação para reduzir o LDL) em pacientes com níveis médios ou baixos de LDL, mas com a PCR elevada. Os resultados mostraram uma redução no risco de eventos cardiovasculares graves, como infarto e AVC.
Mas o JUPITER ainda deixou dúvidas, afinal, os níveis da PCR caíram, mas os de LDL também. A prova de conceito final foi trazida quase dez anos depois, pelo próprio Ridker, com o estudo CANTOS. A equipe de especialistas mostrou que o uso do canaquinumabe, um anticorpo monoclonal que combate diretamente a inflamação, foi capaz de reduzir os riscos de eventos cardiovasculares em uma população de pacientes que já havia tido um ataque cardíaco.
O uso da droga, porém, não avançou porque ela era muito cara e foram observadas infecções nos pacientes, o que não foi bom, de acordo com Santos. “A inflamação não existe só pra fazer mal”, lembra.
Por que a PCR ‘voltou à moda’?
Existem dois principais motivos para a proteína C reativa ter voltado aos mais importantes eventos que reúnem cardiologistas. De acordo com Santos, estudos mais recentes têm mostrado que a PCR consegue ser uma melhor marcadora de risco cardiovascular do que o próprio LDL em populações com doença prévia ou com vários fatores de risco. Um deles, assinado por Ridker, foi publicado na respeitada The Lancet e apresentado no Congresso da American College of Cardiology de 2023. Hoje, a PCR é medida com um teste de sangue moderno e relativamente econômico.
Agora, o que de fato faz os olhos dos especialistas brilharem é o estudo ZEUS, que usa outro anticorpo monoclonal, o ziltivekimab, para combater diretamente a inflamação em pacientes com alto risco de eventos ateroscleróticos. A fase 2 dos testes colheu bons resultados e, agora, os especialistas aguardam ansiosos os resultados mais definitivos, conforme ele é estudado em uma população maior e mais diversa (a fase 3).
O diferencial é que o ziltivekimab parece ser mais específico. “Ele bloqueia uma proteína chamada interleucina-6, que é uma dessas citocinas que aumenta a PCR. Bloqueá-la talvez seja menos deletério, do ponto de vista de possíveis eventos adversos, do que o canaquinumabe, que bloqueava o interleucina-beta.”
Outra esperança reside na colchicina, um anti-inflamatório tradicionalmente usado em crises de gota. Ele já pode ser recomendado a pacientes graves que, mesmo com estatinas, não conseguem controlar os níveis de PCR. “As diretrizes de prevenção europeias colocam o uso dela como uma indicação 2B. Ou seja, pode haver benefício, mas existem ainda dúvidas de que esse tratamento vá beneficiar todas as pessoas.” Os estudos com o medicamento têm chegado a resultados conflitantes.
As novas drogas antiobesidade, como a baseada na molécula semaglutida, têm chamado atenção não só por provocar uma significativa perda de peso, mas também por proteger contra eventos cardiovasculares. No estudo SELECT, o Wegovy, por exemplo, mostrou redução de problemas cardíacos graves independente da quantidade de peso perdida.
O SELECT não foi baseado na proteína C reativa, mas indicou que os pacientes com níveis moderadamente elevados dessa molécula apresentavam queda do biomarcador. Possivelmente, parte do benefício cardiovascular da semaglutida se explica pela ação anti-inflamatória, explica Santos.
Não estamos de mãos atadas
A importância da inflamação no cenário das doenças cardíacas, porém, não descarta o papel crucial dos fatores de risco tradicionais. Inclusive, controlá-los com mudanças de estilo de vida, por exemplo, pode até influenciar positivamente nos níveis da PCR.
“Normalmente, a PCR está aumentada em situações associadas a um maior risco cardiovascular. Por exemplo, muitas pessoas com obesidade visceral, que fumam e que têm resistência à insulina, têm PCR alta”, fala Santos.