A regulamentação da reforma tributária rachou o setor de bebidas e colocou em lados opostos duas paixões dos brasileiros: a cerveja e a cachaça. A guerra entre cervejarias e os produtores de destilados vem acirrando os ânimos do debate sobre o formato do chamado Imposto Seletivo, criado na reforma para onerar produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, que ganhou o apelido de “imposto do pecado”.
Já os destilados querem aproveitar o momento justamente para reverter a vantagem tributária das cervejas, usando o argumento de que é preciso dar paridade de armas a todos no mercado. Nessa briga, os destilados estão unidos, e a brasileira cachaça ganhou a companhia do uísque, da vodca, do gin, da tequila e de outras bebidas que vêm de fora.
O confronto, que vinha se acirrando nos bastidores com acusações mútuas de distorção de dados e “golpes abaixo da cintura”, ganhará novo capítulo público na próxima semana, quando as cervejarias lançam a campanha “Nada como uma cerveja”.
A ideia é mostrar porque as cervejas, que costumam ter percentual de álcool entre 4% e 7% em sua composição, não podem ser comparadas às bebidas destiladas, cujo teor, em geral, varia entre 35% e 55%.
É uma resposta ao mote “Álcool é álcool”, usado pelos destilados como forma de convencer os legisladores e o governo de que o importante não é o teor alcoólico, mas a quantidade do que é ingerido.
O setor da cachaça adotou o lema, que já vem sendo trabalhado em outros lugares do mundo, e as fabricantes de destilados encorparam a iniciativa com a ideia da “dose certa”. Para elas, o importante é o consumo consciente, seja de que bebida for.
Nessa batalha cada vez mais renhida, as cervejas usam como arma a posição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda a tributação específica do álcool como forma de melhorar a saúde pública. Para a entidade, que estabelece balizas para questões médicas e sanitárias em todo o mundo, o imposto cobrado deve ser proporcional ao teor alcoólico da bebida.
Diversos países desenvolvidos usam a lógica da OMS em seu sistema tributário, lembram as cervejarias.
“Não estamos pleiteando benefício algum. Pedimos a manutenção do que já acontece hoje. Estamos argumentando pelo melhor modelo, que segue parâmetros internacionais”, afirma Márcio Maciel, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).
A entidade, que tem associadas como Ambev, Heineken e Therezópolis, representa empresas que respondem por mais de 80% da produção de cerveja do país.
Aqueles que estão no campo dos destilados discordam. Na disputa, estão munidos de dois argumentos principais. O primeiro é que, ao deixar a alíquota da cerveja mais baixa, o governo acaba por incentivar sua compra em detrimento de outras bebidas, já que o consumidor brasileiro tem restrições de renda e é muito sensível a preço.
O outro é que, no Brasil, o consumo de cerveja é tão mais expressivo — os destilados são apenas 5% do mercado — que, na prática, o segmento cervejeiro é o responsável pelos maiores danos à saúde.
“Poupar a bebida em que se concentra a maior parcela do consumo seria ineficiente para combater o consumo nocivo. Tentam construir a falsa narrativa de que a cerveja seria, de alguma forma, mais saudável. A quantidade de álcool por dose padrão é aproximadamente a mesma entre destilados, cerveja e vinho”, afirma Eduardo Cidade, presidente da Associação Brasileira de Bebida Destilada (ABBD), que tem entre as associadas empresas como Bacardí, Diageo e Pernod Ricard.
Os destilados robusteceram seu arsenal nas últimas semanas, depois da publicação de uma recomendação pelo Conselho Nacional de Saúde. Em sua posição sobre o Imposto Seletivo, o órgão defendeu a tributação majorada para produtos como álcool e cigarro, mas foi contra a variação conforme o teor alcoólico. “Tendo em vista que esta medida reduziria significativamente o impacto sobre a cerveja, responsável por 90% do consumo de álcool no país”, argumentou o conselho.
Por trás da discussão sobre a saúde da população, existe o temor dos dois lados de que a Reforma Tributária traga prejuízos às companhias. Ao pedir isonomia tributária, os destilados querem melhorar sua competitividade. Eles lembram que já sofrem restrições de publicidade. Já as cervejarias temem que, se o pedido por uma alíquota única ganhar tração, o imposto de todas suba. Para uma indústria que fatura cerca de R$ 80 bilhões por ano, qualquer variação representa muito.
Quem acompanha a discussão reconhece que as cervejarias têm um trunfo. O fato de o produto ser fabricado no país pode sensibilizar integrantes de um governo que tem no incentivo à produção local o centro de sua política industrial. Os destilados, em sua maioria importados, sabem disso e já têm procurado integrantes do Ministério da Fazenda e do Palácio do Planalto para lembrar que bares, restaurantes e empresas de eventos contam com o segmento para prosperar.