Uma das personalidades mais controversas da cena “tech”, o bilionário americano Michael Saylor, fundador da MicroStrategy — empresa de software corporativo que se “reinventou” na pandemia investindo o próprio caixa em criptomoeda — se considera uma espécie de “Warren Buffett do bitcoin”. Assim como o megainvestidor da Berkshire Hathaway faz com ações de empresas, ele compra a criptomoeda para “nunca mais vendê-la”, apostando na “valorização infinita” do bitcoin.
A lógica é que, como se trata de um ativo de reserva de valor escasso, o mundo precisará se refugiar no tal “ouro digital” para se proteger da inflação. “E a inflação só vai aumentar”, afirma, lançando mão de equações matemáticas de sua época de engenharia aeronáutica no MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts). A MicroStrategy será então um bunker virtual com toneladas de bitcoins.
O raciocínio não chega a ser diferente do de outra vertical de negócios da MicroStrategy, também baseada na “escassez”, que cedo comprou os mais variados domínios de endereços na internet — caso de nomes como Voice.com, vendido em 2020 por US$ 30 milhões, o maior valor já transacionado e que permitiu iniciar as compras de bitcoin.
“Bitcoin é o dinheiro perfeito. É como se Deus descesse do céu e dissesse a você: vou criar um sistema de registro imutável, compartilhado, com não mais que 21 milhões de unidades e vou manter seu dinheiro no ciberespaço. Ninguém nunca vai te enganar. Você vai poder mover telepaticamente as moedas e elas durarão um milhão de anos”, diz.
“Mas na ausência de Deus administrando o sistema monetário perfeito do céu, a segunda melhor coisa seria criarmos um software que fizesse essa mesma coisa. É o bitcoin.”
Diferentemente de outros entusiastas cripto, Saylor diz não estar ansioso com o valor que o bitcoin atingirá nos próximos dias após o chamado “halving”, evento programado para o fim desta semana, que reduzirá pela metade a recompensa dos mineradores e que costuma impulsionar preços. “Com certeza vai ultrapassar o recorde histórico [US$ 73.724], talvez chegue a US$ 100 mil no fim do ano.”
Da mesma forma, afirma não ter se abatido quando a criptomoeda derreteu no último “inverno cripto”, implicando prejuízo de mais de US$ 1 bilhão à empresa. O episódio lhe custou o posto de o mais longevo CEO de tecnologia da Nasdaq, título obtido ainda nos anos 90, antes da bolha das pontocom. Alguns observadores inclusive relacionam o início do estouro da bolha da internet ao colapso de 62% das ações da MicroStrategy em março de 2000, em meio ao um escândalo de revisão contábil que rendeu processo da SEC (CVM americana) e escrutínio pesado de Wall Street.
“Não fiquei nem um pouco nervoso quando o bitcoin caiu para US$ 16 mil. Não precisava vender. Quem comprou ações da minha empresa talvez tenha ficado.”
Dois anos depois de se afastar do dia a dia, Saylor reconhece que “deu a volta por cima” e a empresa, que no início da pandemia quase se inviabilizou, vale agora US$ 25 bilhões e soma US$ 15 bilhões em bitcoin na tesouraria. Neste ano, enquanto o bitcoin subiu 53%, as ações da MicroStrategy saltaram 135% — em um ano, o placar sobe para 112% a 343%.
Antes mesmo da aprovação em janeiro dos fundos negociados em bolsa (ETFs) de bitcoin à vista nos EUA, que trouxe investidores das finanças tradicionais para o segmento, a MicroStrategy foi vista como uma “opção regulada” para gestores de ações ganharem exposição ao bitcoin. Comprar ações da empresa se tornou uma opção “alavancada” de aplicar na criptomoeda.
O empresário fez uma viagem “secreta” ao Brasil, onde se reuniu com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Entusiastas cripto brasileiros disputaram uma cadeira nos eventos em que participou. Ele falou com o Valor na sede da BLP Crypto, uma das anfitriãs e mais antiga das gestoras de investimento em criptomoedas, acompanho de quatro seguranças, com a exigência de que a conversa só fosse publicada após deixar o país. A seguir trechos da entrevista:
Valor: Como o Brasil desponta no mundo cripto?
Michael Saylor: Essa é a minha primeira viagem de negócios ao Brasil. Sou um defensor e evangelista do bitcoin e fiquei entusiasmado por conhecer vários líderes brasileiros e ouvir deles sobre a adoção de ativos digitais. O Brasil tem sido muito inovador. A adoção de ativos digitais pelos bancos brasileiros tem sido, creio eu, uma das mais entusiasmadas e sofisticadas do mundo. Estamos no meio de uma grande transformação digital das finanças, a digitalização do capital e da propriedade. Só que isso tem trazido muita ansiedade e confusão.
Valor: Quais perguntas mais tem ouvido aqui e em outros lugares?
Saylor: Há muita angústia porque as pessoas não sabem classificar todas essas coisas. Qual é a diferença entre uma moeda digital e uma propriedade digital? E o que é energia, capital digital e token? E qual é o caso de uso? Para que servem? Tenho que trocar meu real por dólar, depois por bitcoin? São questões que geram uma ansiedade desnecessária. Uma das coisas mais úteis que podemos fazer é apenas concordar com a taxonomia para que possamos avançar e fazer progressos. Criptoativos implicam fazer muitas coisas de forma muito rápida, que as pessoas não entendem muito bem.
Valor: Qual a fonte dessa ansiedade e confusão?
Saylor: O equívoco ou confusão número um no momento é se a moeda digital, no caso bitcoin, é uma propriedade digital ou um meio de troca. A maior parte da incerteza regulatória surge daí. Se as pessoas entendessem o bitcoin como uma propriedade digital, que é uma reserva de valor — e não um meio de troca —, a maioria das preocupações e dúvidas simplesmente desaparecem. Você não vai usar bitcoin para comprar café.
Valor: Em 2013, o sr. disse que o bitcoin estava com os dias contados. Agora é um evangelista cripto. Como mudou sua cabeça?
Saylor: Naquela época não precisava dele. Os primeiros defensores do bitcoin foram argentinos porque a cada 20 anos todo mundo perde tudo por causa da inflação. As pessoas, normalmente, começam negando o bitcoin — ‘não acredito que funcione, é tulipa’. Depois passam a ter uma visão cética — ‘é muito bom para ser verdade; o governo não vai deixar’. Em 2020, a pandemia virou o mundo de cabeça para baixo e o bitcoin estava começando a se destacar. Naquele ponto, deixei de ser negacionista para cético.